Desde criança sou artesã e sempre gostei de usar materiais "obsoletos", de segunda mão, envelhecidos, por questões estéticas/ambientais/financeiras e dar uma segunda possibilidade à eles. Tinta quase seca virava pasta pra colar miçangas em CDs da UOL; roupas velhas que desmontava e se tornavam outra; jornais velhos escritos em japonês se tornavam colagens e capas pra caderno. Apropriação de um voltada pra criação de outro, somada à artesanalidade,  é tema recorrente para mim.
​​​​​​​Durante uma época, eu colecionava lâmpadas incandescentes queimadas e as esvaziava retirando toda a parte interna e deixando só o bulbo usando ferramentas, pensando em um futuro trabalho de arte. Acumulei várias. Mas uma, justamente porque enquanto eu a esvaziava quebrou por acaso, criando um furo, me fez ter essa epifania trazendo essa visão da quebra como potencial criativo, como algo poderia crescer por aquele furo onde algo poderia crescer de dentro pra fora, aquela fresta por onde uma outra luz poderia entrar, "o vazio" como potencial pra gerar algo, abrindo espaço.
Esta já havia convidado o acaso para participar de um trabalho antes, E nessa apresentação ela o fez de novo, nos chamou pra dançar.
Uma lâmpada quebrada, dezenas de pérolas espalhadas pela sala como aleluias (cupins alados) que deixam sua colônia em revoada para gerar outras, se multiplicar. Sementes espalhadas pelo vento, pelos pássaros. A polinização das abelhas.
A quebra, a ruptura da integridade e da perfeição, a perda do controle, a fenda por onde um raio de luz entra, a fissura no concreto onde uma planta cresce.
Um furo na madeira que revela múltiplos caminhos, fragmentos e rastros.
Uma queimada que, por acaso, revela estruturas desconhecidas (ver trabalho “Descoberta”, na página Relações).
O cupim devorando a integridade das estruturas, as traças devorando livros, Saturno devorando seu filho (ref. à Goya), o artista devorando tudo que os sentidos encontram. Porém, nesse último caso, penso que ele próprio é infestado.
Uma ideia, um conceito fragmentado. A gênese do múltiplo, do conceito de monólito fragmentado, do conceito multifacetado, da multiplicidade.
Uma parceria entre o ato criador e o acaso. Por vezes o acaso me convida, por vezes eu o convido.

Nesse projeto de conclusão de curso, exibo os resultados de minhas pesquisas artísticas sob o nome de Kopi’i’grafia [do tupi kopi'i (cupim) + do latim graphia (escrita)], fazendo referência à origem das séries desses trabalhos artísticos, que surgiu da observação e registros dos rastros da atividade dos cupins em um móvel encontrado e apropriado por mim. Acabei eu mesma por ser infestada/inspirada pelo cupim, como conceito e deflagrador de processos.
Decidi pelo nome em tupi, por ser a origem da palavra cupim, como se fosse atrás da camada mais profunda da palavra, assim como no trabalho.
QUANDO A LâMPADA QUEBRADA DEIXA A LUZ ENTRAR
Esse projeto começou no desenvolvimento de uma série de trabalhos feita com o objetivo de chegar à conceitos essenciais da nossa identidade artística. Apresentando um vestível que representasse minha identidade, parte da máscara (feita com a técnica de empapelamento, coberta com páginas de livros e metal mais uma aplicação de uma estrutura demonstrada na Fig. 1)  que compunha o traje era aquela lâmpada, coloquei dentro dela uma estrutura parecida com uma árvore feita de arame e pérolas soltas (ver Fig. 1), caiu no chão, se espatifou e as pérolas se espalharam pela sala toda. Uma performance com participação surpresa do acaso, como resultado a quebra do controle, a identidade / o ego em cheque. 
Esta lâmpada já havia convidado o acaso para participar de um trabalho antes e nessa apresentação ela o fez de novo, nos chamou pra dançar. Uma dança confusa, caótica, tentativas de recuperar os fragmentos, lidar com a minha própria “cara no chão” e reconhecer a beleza nisso. A beleza nesse contraste entre o cuidado ao lidar com o vidro frágil da lâmpada, colar as pérolas, montar uma estrutura dentro da lâmpada, aplicar em uma máscara e o caos no espatifar do vidro, o movimento brusco e explosivo das pérolas voando para todo lado, a preocupação, com a integridade, tanto da obra quanto a física, de ser literalmente atravessada pelo vidro. Felizmente não fui cortada, mas fui atravessada pelo acontecimento de maneiras que repercutem até hoje. 
A própria pérola é resultado de uma reação à irritação causada por algo externo e para se proteger a ostra produz uma substância dura e iridescente para isolar, lidar com o “invasor”. 
O meu próprio processo, desde muito nova, normalmente começa criando um caos para depois organizá-lo, espalho os materiais que tenho à disposição à minha volta e os observo. À medida que olho para eles e começo a manipulá-los, ideias e conexões vão surgindo a partir da experimentação, ela é o início de tudo. Depois vem as relações com outras coisas, mas no começo é tudo muito livre, experimental e aparentemente aleatório.
Fig. 1
Recuperando essa memória me veio a imagem dos fragmentos de cupim, das bolinhas de metal que faço, em correlação às pérolas e fragmentos produzidos pelo cupim (como na série Fragmentos | Quebra). A essa ideia também correlacionei o glitch (falha) como fragmentação do monólito-arquivo, alimentei um programa inadequado para manipulação de imagem com um vídeo (o vídeo criado com uma lente macro registrando uma gaveta devorada por cupins, mostrando furos e fragmentos, que aparece na série "Macro", dentro de Fragmentos | Quebra , uma técnica chamada data bending, assim corrompendo o arquivo e criando falhas, fragmentação na imagem.
A série “Ouro” (ver na página "Relações"), foi criada pensando em contraste, contraponto ao papel queimado, corroído, efêmero, a aplicação de folha de ouro, valioso, perene.
Em contraponto à apropriação de objetos prontos (móveis e livros, por exemplo), a artesanalidade, detalhismo, trabalho atento às técnicas e texturas.
Amo experimentar com as possibilidades (e limitações) plásticas dos materiais, maneiras de manipulá-los para obter resultados e texturas diferentes. O fazer pra mim é uma maneira de pensar. Dobrar, cortar, colar, queimar, tingir, desmontar, reconfigurar.
Desdobramentos, entrelaçamentos
Fig. 2
Em seguida ao criar uma caixa com o mesmo fim, de algo que sintetizasse a minha identidade artística de alguma forma, criei uma caixa formada por envelopes de origami feitos de páginas de livros antigos e na parte de cima um tear feito de tiras também de páginas de livros antigos, linha e fita de cetim costuradas nos envelopes (Fig. 2). Alguns envelopes eram adornados com bordados também. A única parte de dentro possível de acessar, são os envelopes do lado de fora da caixa. Dentro, fora. O texto que comumente estaria do lado de dentro do envelope, é o próprio envelope. Palavra textura, palavra dobrada, a palavra em xeque.
Também com essa ideia de colocar a palavra em xeque, pensei em dissolvê-la em um material análogo à tinta usada em livros, criei a série Papel | Tinta e em alguns trabalhos, água, interagindo, criando camadas, às vezes translúcidas, às vezes cobrindo completamente as letras. 
Tinta nanquim escorrida, soprada, pingada à distância, pintura espelhada  e uma técnica chamada suminagashi (tinta suspensa em água, criando um efeito de anéis concêntricos, marmorizado) foram utilizadas.
Múltiplo, monólito
No próximo trabalho da sequência, me apropriando de um móvel de madeira (uma mesinha antiga para telefone fixo com espaço para listas telefônicas) e percebendo indícios de presença de cupim (os fragmentos/dejetos que caíam pelo chão e um som que lembra  um pau de chuva) comecei a investigar o estado da madeira. Os insetos já tinham ido embora, mas deixaram seu rastro, que descobri depois de “escavar” o móvel para ver como estava a estrutura. A esse rastro dei o nome de gravura dos cupins, Kopi’i’grafiaNa parte de trás desse móvel/monólito (Fig. 3.1), os cupins deixaram só a folha externa e a mais profunda. Foi essa parte que considerei uma gravura. Na época fiz uma impressão com tinta guache e uma colher.  Posteriormente, fiz uma nova série usando a técnica da frotagem, usando meus dedos, grafite e um limpa-tipos sobre papel manteiga. Veja a série Gênese | Monolito | múltiploNessa mesma matéria também cheguei a outro conceito primordial do meu fazer: a multiplicidade. Esse móvel-conceito se fragmentou, assim como a própria “ideia-cupim” começou a produzir múltiplos caminhos mentais, que se desdobraram em séries de trabalhos e correlações. 
Na extensão do móvel onde haviam buracos, enxertei tubinhos de páginas de livros, para reforçá-lo e por razões estéticas. Adornando celulose (madeira) com celulose (papel) de diversas cores (estágios de envelhecimento). De árvore, à madeira e papel (Fig. 3.2, Fig. 3.3). O processo me remeteu a inclusão de pedras preciosas em metal, na joalheria.
A torre (Fig. 3.4) foi feita com de palitos de madeira revestidos com páginas de livros e canudos de páginas enrolados em estágios de envelhecimento diferentes, criando uma gradação de cores e depois foram texturizados e embaixo acrescentei musgo seco.
Na lateral (Fig. 3.5), dos anéis de crescimento presentes, além de fotografias, fiz uma cópia em papel vegetal com nanquim e duas artes digitais, uma incluindo um texto (imagens na série Gênese | Monolito | múltiplo).
A coleção de livros antigos (Fig. 3.6) que compõe o móvel-monólito também foi utilizada na confecção da maior parte dos trabalhos aqui exibidos em todas as séries.
origem da série Gênese | Monolito | múltiplo - Fig. 1
​​​​​​​​​​​​​​Na série Comer | Digerir | Escavar | Erodir |  Entalhar | Abrir,  para criar baixos relevos, abrir caminhos, as páginas de livros antigos foram cortadas com estilete, queimadas com fogo, corroídas com ácido, furadas e texturizadas.​​​​​​​
A minha visão do cupim também se ampliou. Ao pensar num cupim artista, também pensei no artista como cupim, um devorador de ideias e materiais, digerindo tudo e produzindo fragmentos, estruturas complexas.
Me veio à memória também um texto de Manny Farber chamado “White Elephant vs. Termite Art” (Film Culture, no.27) em que ele fala de “arte cupim”, que diz, em tradução livre, 
“segue sempre em frente devorando seus próprios limites e provavelmente
 só deixa no seu caminho sinais de atividade diligente, faminta, ansiosa e 
pouco cuidadosa. Uma arte que sente seu caminho através de paredes de 
particularização, sem sinais de que o artista tem qualquer objetivo em mente
 que não seja devorar os limites imediatos de sua arte e transformar esses
 limites em condições para sua próxima realização."

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